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13 novembro 2009

DO SENTIDO DE LUGAR NA CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA * O interesse renovado pelo Lugar em certas vertentes da arte contemporânea ao longo da última década,

DO SENTIDO DE LUGAR NA CONDIÇÃO CONTEMPORÂNEA *

O interesse renovado pelo Lugar em certas vertentes da arte contemporânea ao longo da última década, acompanha o debate nas diversas áreas de conhecimento, nomeadamente das ciências sociais e humanas, sobre a ideia de perda do seu sentido na sociedade actual. Aparentemente, em consequência das vivências actuais do espaço e do tempo.

Se, por um lado, nunca estivemos tão conscientes da enorme diversidade das culturas locais no planeta e, portanto, da diversidade de lugares, por outro também aumenta a noção de distância por processos universalizantes de migração e novas tecnologias da informação e da comunicação que tendem a separar as experiências dos ambientes físicos. Utilizando uma expressão do sociólogo Mike Featherstone (1), parece que “estamos todos no quintal de cada um” e, no entanto, desconhecemos muitas vezes (metaforicamente falando) a diversidade do que está plantado no nosso quintal. Ou não nos identificamos com ele, achamos que o seu cuidar não nos diz respeito. O que parece estar em causa são os moldes em se pode (re)estabelecer hoje a experiência do Lugar, acreditando que dos valores qualitativos de tal experiência derivam valores de cidadania, importantes para as necessidades advindas da diversidade e sincretismo dos fluxos culturais. De pessoas, informação, imagens, que povoam os espaços, hoje, particularmente as cidades.

Se o sentido de Lugar resulta da partilha de uma cultura local que se relaciona com um conhecimento disponível para um grupo de pessoas que são os habitantes de um espaço físico delimitado, tendo esse conhecimento “persistido através do tempo e podendo incorporar rituais, símbolos e cerimónias que ligam as pessoas a um lugar e a um sentido comum do passado” (2), então como se constrói um sentido de Lugar para os recém-chegados, desintegrados dessa memória colectiva? Além de ser “também muitas vezes assumido que vivemos em localidades onde os fluxos de informação e de imagens obliteraram o sentido de memória colectiva e a tradição de localidade ao ponto de “não haver um sentido de lugar” (3).

Talvez o sentido de Lugar possa emergir de pequenos rituais de “práticas incorporadas entre vizinhos, amigos e companheiros. Os pequenos rituais vinculados no comprar uma rodada de bebidas de modo particular, ou voltar a ocupar os mesmos lugares num bar em cada semana, ajudando a formalizar relações que cimentam os laços sociais entre pessoas” (4).

São experiências comuns que se sedimentam e associam a um espaço físico, passíveis de serem acessíveis também para aqueles de curta permanência temporal nesse espaço: a população móvel, uma grande percentagem dos habitantes das cidades actuais, com o seu mosaico de culturas, histórias, línguas, religiões. Tendo em conta que a mobilidade que caracteriza esta população decorre dos processos de globalização, redefine a ideia de Lugar no mundo contemporâneo. Assim, torna-se importante que aqueles que vivem experiências de desterriotrialização e despossessão, de instabilidade geográfica e de ausência de sentido da memória colectiva, possam também, de algum modo, ter a sensação de “estar em casa” onde vivem e trabalham, independentemente do tempo que aí possam permanecer. Neste sentido, será interessante ter em mente a ideia de Featherstone de que o conceito de cultura local é um conceito relacional, pois mesmo o “desenho de uma fronteira em volta de um espaço particular é um acto relacional que depende da figuração de outras localidades significantes dentro da qual o procuramos situar” (5).

Para a (re)construção do sentido de Lugar é necessária a capacidade de transformar enquadramentos e a de movimentação entre uma série de vozes diversas, de “manusear uma variedade de material simbólico do qual várias identidades podem ser formadas e reformadas em diferentes situações, o que é relevante na situação global contemporânea” (6). Como considera o antropólogo Arjun Appadurai (7), a ordem global deve ser entendida como uma ordem complexa, disjuntiva e imbricante.

O sociólogo Jan Nederveen Pieterse sugere que a globalização seja vista como um processo de hibridização que dá lugar a uma mistura global. “A hibridização como perspectiva pertence ao resultado fluído das relações entre culturas: é a mistura de culturas e não a sua separação que é acentuada. Ao mesmo tempo, a hipótese sublinhada sobre cultura é a de cultura/lugar” (8).

Pieterse considera que existem dois conceitos de cultura que de um modo geral têm sido usados indiscriminadamente: cultura territorial e cultura translocal. O primeiro assume que a cultura provém de um processo de aprendizagem e vivência essencialmente localizado. Uma cultura de um grupo social ou de uma sociedade. O segundo entende a cultura como um software humano geral, um processo de aprendizagem translocal. Os dois conceitos não são, segundo Pieterse, incompatíveis, pois o segundo encontra expressão no primeiro, uma vez que as culturas são o veículo da cultura, “mas reflectem diferentes ênfases em relação a processos históricos de formação de cultura e por este motivo geram avaliações marcadamente diferentes de relações culturais. Meta-hipóteses divergentes sobre cultura sublinham os vocabulários variados nos quais as relações culturais são discutidas.” (9).

No entanto, estamos convictos que o sentido de Lugar no mundo contemporâneo se deve estruturar em relação com o conceito de cultura translocal, na medida em que a este estão associadas as noções de cruzamento, interstícios, heterogeneidade, tradução, mediação, identificação ou mestiçagem. Este conceito envolve um sentido de Lugar que “olha” em volta, de acordo com o que a geógrafa Doreen Massey (10) chama “um sentido global de lugar”. Para Massey a especificidade do lugar deriva do facto de cada lugar ser o focus de uma mistura singular de relações sociais mais amplas e mais locais.

Como se disse, a nossa relação com o espaço e o tempo tem sofrido tranformações significativas, acompanhando o ritmo acelerado do desenvolvimento das tecnologias de informação, a diversidade excessiva de estímulos visuais, o surgir de novos padrões de consumo e de mobilidade, entre outros, gerados pelos sistemas globais. Estes factores tendem a condicionar, de modos específicos, a experiência pessoal, directa, com o mundo à nossa volta.

Que lugares podem derivar de espaços e tempos não coordenados entre si será, provavelmente, uma das questões centrais que se coloca, como desafio, à arte contemporânea que trabalha com o Lugar. Uma via possível para os artistas envolvidos em tal investigação será a exploração de recombinações de espaço e tempo que possibilitem a ocorrência de actividades sociais, com referência nas particularidades dos lugares entendidos enquanto fusões de espaço e experiência. Possibilitando deste modo o desenvolvimento de memórias de experiências vividas (e partilhadas) não tão facilmente esquecíveis quanto as “memórias imaginadas” derivadas das experiências filtradas pelos mass-media. Segundo Andreas Huyssen (11), as memórias de experiências vividas são as necessárias para construir diferentes futuros locais num mundo global.

O espaço e o tempo são categorias fundamentais que dão forma e conteúdo à mudança histórica e são, inevitavelmente, mutáveis. Se é um facto que vivemos num mundo onde os lugares se caracterizam por fronteiras instáveis e culturas transformáveis que não possuem um fluxo regular de tempo nem conjuntos de relações permanentes, o assunto não é “a perda de uma qualquer idade de ouro de estabilidade e permanência. O assunto é antes a tentativa, na medida em que enfrentamos os muitos reais processos de compressão do espaço e do tempo, para assegurar alguma continuidade dentro do tempo, para possibilitar alguma extensão do espaço vivido dentro do qual nos podemos mover e respirar” (12).


Marta Traquino
Artista Plástica e Investigadora em Arte Contemporânea.



NOTAS
* O presente texto é um fragmento da dissertação A Construção do Lugar pela Arte Contemporânea (Marta Traquino, ISCTE 2006).
(1) Featherstone, Mike, Undoing Culture, London, Sage, 1995.
(2) Featherstone, Mike, Idem, p.92.
(3) Meyrowitz (1985) citado em Featherstone, Mike, Idem, p.93.
(4) Featherstone, Mike, Idem, p.94.
(5) Featherstone, Mike, Idem, p.92.
(6) Featherstone, Mike, Idem, p.110.
(7) Appadurai, Arjun (1996), Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization, in Public Worlds, Volume I, University of Minnesota Press, 1997.
(8) Pieterse, Jan Nederveen in Featherstone, Mike; Lash, Scott; Robertson, Roland, (eds.), Global Modernities, London, Sage, 1995, p.62.
(9) Pieterse, Jan Nederveen in Featherstone, Mike; Lash, Scott; Robertson, Roland, (eds.), Idem, p.61.
(10) Massey, Doreen, Space, Place and Gender, Cambridge, Polity Press, 1994.
(11) Huyssen, Andreas, Present Pasts: Media, Politics, Amnesia, in Public Culture, vol. 12, nr. I, Winter 2000, Durham.
(12) Huyssen, Andreas, Idem, p.34.

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